Nesta quinta-feira (18), médicos anunciaram o 7º caso de ‘cura’ do HIV. Mas como foram os outros exemplos de sucesso e quando, de fato, teremos uma cura acessível para grande parte da população?
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O sétimo caso de “cura” do HIV foi anunciado nesta quinta-feira (18). O paciente de 60 anos de idade é um alemão que não tem mais vestígios do HIV em seu corpo após ter feito um transplante de medula óssea, de acordo com uma pesquisa publicada antes da 25ª conferência internacional sobre a Aids, que acontece na próxima semana.
O homem, que prefere permanecer anônimo, é apelidado de “novo paciente de Berlim”, uma referência ao primeiro “paciente de Berlim”, Timothy Ray Brown, a primeira pessoa a ser declarada curada do HIV em 2008, que morreu de câncer em 2020.
Diagnosticado com o vírus em 2009, o alemão recebeu um transplante de medula óssea para tratar a leucemia em 2015 e conseguiu interromper seu tratamento antirretroviral no final de 2018. Quase seis anos depois, ele não tem carga viral detectável, de acordo com os pesquisadores.
Mas como é possível que alguém seja considerado, de fato, curado do HIV? O que é a remissão e quais as diferenças entre os casos de sucesso? Teremos, por certo, alguma cura acessível para grande parte da população em breve? Entenda nessa reportagem.
Dá para dizer que uma pessoa foi curada do HIV?
Existem alguns critérios para consideramos que uma pessoa foi curada do HIV, explica Ricardo Diaz, infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Porém, ele diz que atualmente o termo “cura” não é o mais indicado. O mais correto seria referir-se aos casos como “remissão sustentada do HIV sem antirretrovirais”.
“Isso quer dizer que você tira o tratamento e o vírus não volta. Em algumas pessoas a gente tem evidências muito fortes de que realmente o vírus não existe mais. Nenhum pedacinho do vírus, nem qualquer sinal de que ele esteja escondido no corpo”, afirma o infectologista.
Para isso, Diaz explica que é preciso esperarmos ao menos dois anos. Esse é um critério importante, segundo ele, para que seja verificado efetivamente se o HIV não voltou sem os antirretrovirais e que existe essa tendência progressiva de diminuição dos anticorpos detectáveis para o vírus.
O infectologista diz que embora fundamental, suspender o tratamento com antirretrovirais é um procedimento relativamente arriscado, pois promove a interrupção do tratamento que impede a multiplicação do vírus no organismo.
“A gente ainda tem instrumentos da ‘Idade da Pedra’, da ‘Idade Média’ para monitorar essa remissão. Idealmente, a gente teria uma espécie de Raio-X do corpo da pessoa para comprovarmos que não tem mais vírus aqui, ali, etc.”, lamenta.
Como foram os outros casos de ‘cura’?
Todos os outros pacientes, com exceção de um, receberam células-tronco de doadores de medula óssea que tinham uma mutação rara de um gene chamado CCR5, que impede a entrada do HIV nas células. Os doadores dos casos anteriores eram pessoas que herdaram duas cópias do gene mutante, uma de cada pai, o que as tornava “praticamente imunes” ao HIV.
O novo paciente de Berlim é o primeiro a receber células-tronco de um doador que herdou apenas uma cópia, uma configuração muito mais comum que dá esperança de encontrar mais doadores em potencial.
O “paciente de Genebra”, revelado em 2023, é outra exceção, pois recebeu um transplante de um doador que não tinha nenhuma mutação desse gene.
Menos de 1% da população é portadora dessa mutação protetora do HIV, portanto, é muito raro que um doador de medula compatível tenha essa mutação.
Todos esses casos, segundo o infectologista Ricardo Diaz, podem ser classificados como “remissão sustentada do HIV sem antirretrovirais” ou “cura esterilizante”, embora esse não seja um termo mais amplamente aceito.
“Isso quer dizer que a gente consegue ver uma remissão. Temos uma boa evidência de que o vírus foi embora de forma definitiva, mas não temos uma certeza absoluta. Por isso, é preciso acompanhar essas pessoas para sempre. Por isso, ficou meio desatualizado o termo cura esterilizante.
O que são os ‘controladores de elite’ do HIV e qual a diferença entre os casos de cura?
Além desses exemplos citados acima, uma argentina de 30 anos e uma paciente americana da cidade de São Francisco, de 67 anos, se tornaram conhecidas por serem o que a ciência chama de “controladoras de elite” do HIV – pessoas capazes de obter uma “cura funcional” do vírus mesmo sem receber medicamentos.
“A cura funcional é aquela em que você controla o vírus e não tem mais nenhuma evidência de que ele possa fazer algum mal à saúde. É aquela daquelas pessoas que a gente chama de controladores de elite – não é uma coisa infrequente, acontece em 1% a 3% das pessoas”, explicou Diaz ao g1 em 2021.
Segundo o pesquisador, essas pessoas têm uma carga viral indetectável, por isso, o vírus aparenta não se multiplicar de uma forma que é possível de se enxergar com métodos de laboratório.
“E elas não têm uma diminuição da imunidade – não cai o CD4 [componente de um tipo de célula de defesa]”, completou.
Quando o HIV infecta o nosso corpo, ele entra no DNA de todas as nossas células. E, à medida que as células vão se reproduzindo, fazem o mesmo com o material do vírus – e o jogam para a corrente sanguínea.
O que acontece com os controladores de elite, explica, é que o sistema imune mata as células antes que os vírus saiam dela. É uma estratégia chamada “shock and kill” – “chocar e matar”, em tradução livre.
“O que acontece é que só vai sobrar vírus nessas pessoas onde você tem como se fosse um deserto – em que você não consegue fazer com que o vírus se multiplique [para matar as células]”, esclarece.
“Só sobra HIV onde tem cromatina repressora – como se fosse uma tumba para o vírus. E ele não consegue sair. Aí essa pessoa adquire essa cura – porque sobraram pedacinhos de vírus, ou [o vírus] está naquele local que ele não consegue sair, que é a cromatina repressora. Isso acontece muito raramente – e provavelmente aconteceu duas vezes, que a gente tenha detectado: essa moça da Argentina e na outra, de São Francisco”, explica.
Por que o HIV é tão difícil de curar?
Na vasta maioria das pessoas que não consegue controlar naturalmente o HIV, a intenção da terapia antirretroviral é “acordar” o vírus que está latente – “dormindo” dentro das células – e eliminá-lo. É o mesmo “chocar e matar”, só que com a ajuda de medicamentos.
É essa latência que torna tão difícil eliminar o HIV.
“Tem uma quantidade de células – que é de 0,01% até 0,0001% – que têm vírus latente. O vírus latente vai acordando ao longo do tempo. Se você tratar as pessoas com coquetel, o vírus vai saindo da latência e você vai diminuindo essa porcentagem de vírus latente. Igual a um balãozinho, que vai murchando”, explica Ricardo Diaz.
“Aí você cura a pessoa – só que demora. 80 anos. Para curar uma pessoa, você teria que tratar de forma efetiva por 80 anos. Por isso que não dá para interromper o tratamento – porque, na hora que você interrompe, aparece um vírus latente”, esclarece.
Quando teremos uma cura acessível para grande parte da população?
Todos os setes casos considerados “curados” adotaram uma estratégia que Diaz chama de anedótica, pois são considerados raros e impossíveis de serem traduzidos para uma escala maior.
“Eles servem para provar um conceito: a gente cura as pessoas. Mas não podemos usar isso e curar todo mundo.
Ele diz também que esse não é um procedimento simples, pelo contrário: um transplante de medula envolve riscos e não é isento de complicações.
“Tivemos o caso de pacientes na Holanda, por exemplo, que fizeram o mesmo procedimento e dos oito envolvidos, sete morreram. Ou seja, o transplante de medula é uma coisa séria. Além disso, [nesse mesmo caso], o paciente que não morreu, não teve sucesso”, lamenta o especialista.
Outro fator importante que impede a universalização dessa técnica é o fato de que a medula do transplante precisa ser “resistente”, salienta Diaz. Um exemplo da relevância disso é o que aconteceu com os “pacientes de Boston”, duas pessoas que passam por um transplante do tipo e que, aparentemente estavam curados, mas que viram o vírus se manifestar meses após o procedimento.
Para Diaz, o desafio agora é encontrar uma técnica que faça “menos mal do que bem”. “E fazer transplante de medula para todo mundo vai matar muita gente que estaria bem por aí”, alerta.
Atualmente no Brasil existem 960 mil pessoas vivendo com HIV, segundo o Ministério da Saúde.
“A gente precisa achar alguma coisa que não seja muito tóxica e que consiga ser feita em grande escala. Existem várias frentes. Temos mais um caso [de ‘cura’] a celebrar […]. E temos pesquisa no mundo inteiro que visam essa remissão sustentada do HIV. Há 10 anos que eu escuto de especialistas que a cura vai chegar em 10 anos. Infelizmente, não chegou. Mas a gente está chegando cada vez mais perto”, analisa.